sexta-feira, 19 de setembro de 2008

UMA LINHA HUMANA


O artista visual Patrick Hamilton (belga, radicado no Chile) ocupa uma sala do Museu de Arte Contemporânea, por meio do Projeto Americanidade, no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura. Desde o dia dezoito deste mês, Hamilton expõe alguns de seus trabalhos que compõem uma série, na qual explora diferentes ferramentas como suporte para fotografias de cidades, imagens publicitárias e estampas super coloridas, de referências kitsch.
Na sala do MAC, há baldes de metal dispostos no chão. Dentro deles, a imagem de uma grande cidade nos chama atenção. Mas como um balde pode conter a cidade? Como vemos a paisagem metropolitana do alto, se o balde está ao chão? Aqui a lógica se inverte.
E que cidade é essa? Assemelha-se a uma capital norte-americana, mas poderia ser também uma cidade emergente dos Emirados Árabes, ou de Hong Kong, Taiwan, Cingapura... Afinal, boa parte das modernas cidades se confunde. Da mesma maneira que parecem seguir à risca o modelo econômico ditado pelo neoliberalismo, também seguem, de forma geral, os mesmos “padrões sofisticados de arquitetura”. São centros urbanos que se diluem na falta de identidade. Mas quando bem reparamos nas fotografias, visualizamos, ao longe, uma cadeia de montanhas. A Cordilheira dos Andes? Estamos, então, diante do retrato da atual capital do Chile? Surpreendemo-nos, pois aqui os meios de comunicação não informam sobre essa moderna Santiago. Percebemos nossa ignorância causada pela acomodação perante a mídia que, em vez de nos aproximar do mundo, muitas vezes, nos distancia dele.
Nas paredes opostas aos baldes, duas fotografias impressas em papel estão penduradas por um prego em cada ponta. As fotografias exibem dois facões, postos um ao lado do outro, que, por sua vez, apresentam imagens nas lâminas. Uma delas é o retrato de uma cidade cinza de inverno: ruas vazias, prédios, neve, árvores nuas. A outra, apesar dos tons mais calorosos, exibe uma cerca elétrica que, tremida, sugere as frias formas do arame farpado.
O que o balde e a faca representam para a homem? Ambos são objetos que, por serem simples e eficazes, fazem-se indispensáveis ao lar. Logo os relacionamos à mão-de-obra, ao trabalho. São, portanto, instrumentos que – segundo Houaiss, “s.m. objeto us. para executar algo; apetrecho, ferramenta 2 fig. recurso ou pessoa utilizado como intermediário para se chegar a um resultado (...)” –, quando descobertos, significaram um salto na história da humanidade.
Pois houve um momento em que o homem "pré-histórico" descobriu a ferramenta. Ele percebeu que poderia utilizar um objeto oco como recipiente para alimentos, um pedaço de osso com extremidade pontiaguda para furar, rasgar e cortar, assim como uma pedra presa a um pedaço de madeira para dar golpes certeiros e, dessa forma, caçar e proteger-se mais facilmente. A ferramenta poderia ter inúmeros fins e passou a auxiliar o homem no desafio diário de manter-se vivo. No início, aquilo que estava em jogo parecia “apenas” questões de sobrevivência. Hoje, ao olharmos a paisagem urbana da janela de um prédio, constatamos o projeto megalomaníaco que o homem vem construindo, através de instrumentos cada vez mais aperfeiçoados, desde a descoberta dos mesmos. Como avaliar hoje o mundo construído por nós?
Fomos, no decorrer dos séculos, desbravando um caminho tortuoso em nome de melhores condições de vida e aqui chegamos. Habitamos casas, apartamentos, condomínios, espaços cercados por pequenas muralhas, grades e sistemas de segurança eletrônica. Tais espaços, como múltiplas fortalezas que se (des)articulam dentro da cidade, em meio a largas avenidas, viadutos e passarelas – toda uma estrutura possível por intermédio delas, as ferramentas – protegem o homem do perigo que há lá fora.
Investimos capital em tecnologias que promovem a destruição – armas de guerra e indústrias poluentes que, direta e indiretamente, exterminam ecossistemas inteiros – enquanto uma quantidade monstruosa da população mundial, carente dos direitos mais básicos do ser humano, ainda tem que enfrentar tão duramente aquele velho desafio de manter-se viva a cada dia.
Na obra de Hamilton, também podemos entrever uma metáfora sobre a origem da própria arte. Sabemos da incógnita acerca do momento em que a preocupação com a forma de um objeto, antes instrumento meramente utilitário, supera seu aspecto funcional. Na verdade, importa mais entender por quais motivos o homem sentiu necessidade de ir modelando seu objeto não só para torná-lo eficiente, mas também para torná-lo belo. Mais tarde, o que impulsiona esse mesmo homem a criar algo simplesmente para suprir seu prazer estético – a obra de arte?
Observamos o caminho desse homem e lhe traçamos uma linha, para compreendê-lo melhor. Uma linha certa, contínua, fluida. No entanto, logo verificamos a impossibilidade desse traço. O caminho humano jamais seria reta clara e previsível. Que um dia seja, ao menos, harmonioso, na sua imperfeição.
Raisa

3 comentários:

Cecí Shiki disse...

Minha amiga! voce ta é de parabens... no me atrevo a escrever um txt depois deste! ta otimo! =)

Raisa Christina disse...

você deixe de história

Clarisse disse...

grandes percepções.
dar uma de clóvis agora:

percep..sons.