sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Exposição Rotativa - Jussara Correia


O que chamamos hoje de vídeoarte deve ser entendido como linguagem das artes visuais desassociada do cinema, ainda que não se furte, necessariamente, a manter com este produtivas relações. Muito embora seja remanescente deste, considerando as experimentações dadaístas e surrealistas de Man Ray e Salvador Dali, por exemplo, durante os anos vinte do século passado, a vídeoarte só vai ser instaurada de fato quando Nam June Paik, no final da década de cinqüenta, vai firmá-la como tal, ao eleger a câmara como instrumento importante de expressão.

Quando em 1965 a indústria americana lançou a portátil máquina “Portapak” da Sony, de tecnologia japonesa, com a qual qualquer pessoa podia gravar e rever imagens do cotidiano, expandiu-se com ela as possibilidades da videoarte, dentro do universo da multimedia, explorada pelos artistas visuais como, entre outras coisas, recurso de subjetivação. E é exatamente deste fundamento que emerge a produção de Jussara Correia.

Quando falamos em subjetividade na arte, a primeira idéia súbita, em mente, é a da exacerbação do eu, ou seja, do artista em torno de si mesmo, alheado do seu derredor. Não é, porém, o caso da poética de Jussara Correia, ou seja, do seu fazer, que passa por um processo de subjetivação complexo e que vai mais além. Não se trata da artista diante do espelho, como o mito de Narciso embevecido pela própria imagem, mas diz respeito a seu “eu” que se pulveriza nas coisas banais do mundo, resignificando-lhes o sentido. E o que poderia passar despercebido, aos menos desavisados, toma forma sensível e estética aos olhos da artista, instando-nos a sentir e pensar.

Esse estado de subjetivação, embora possa ser capturado das situações corriqueiras do dia a dia doméstico, em Jussara, expande-se para além dela própria e do seu pequeno mundo particular e alcança outras fronteiras. Trata-se de uma arte que ultrapassa a virtuose técnica, a alegoria blasé, o espetáculo frívolo, a simples fruição pela fruição, porquanto mais interessada em apontar, com sua vídeoarte, as fragilidades e resistências da vida.

Um exemplo é seu bestiário, a forma como a obra de Jussara transfigura a imagem do animal, pinçada de sua rotina, humanizando-o e vice-versa. No vídeo Pássaro Sobre Relógio, deparamo-nos com a displicência solitária de um pássaro, reconfortado pela suspensão quase silenciosa (não fosse os sustenidos) da madrugada, cúmplice do tempo liquido do relógio que, por sua vez, segue seu curso ensimesmado.

Em Palco Aberto, testemunhamos, ou melhor, compactuamos com a imagem de uma lagartixa apedrejada e a voz esmaecida da artista/eu. Justapomo-nos, num estado de torpor, entre a imobilidade do corpo mutilado do animal e o desânimo da fala em primeira pessoa. Somos deslocados para uma zona fantasmagórica de dor sem dor, uma espécie de limbo, em que a morte parece acalentar o cansaço da vida.

Já no vídeo De Quanta Terra Necessita um Homem?, dá-se o encontro fortuito de coelhos na intimidade da rua deserta, sob o olhar noctívago de quem espreita os rumores da madrugada e compartilha de sua atmosfera solitária. Este clima é acentuado pela luz tênue dos postes e dos faróis dos carros lá longe, onde se configura a cidade com seus habitantes e suas histórias, distante dos coelhos que se alimentam da noite.

Aliás, sem abrir mão do espaço (atributo da pintura, por excelência), Jussara se interessa pela questão do tempo silencioso, destituído de trilha sonora, como campo de força. Esta contaminação de elementos se faz aqui pela quebra da narrativa (tempo) e pelo desacelerado ritmo das imagens repetidas (espaço), que acabam por ocupar um espaço/tempo de prolongamento, responsável pelo efeito de pertencimento do leitor em relação à obra, na medida em que o induz reações contraditórias, como na obra Quarto Ato.

Neste trabalho, outra vez, o olhar voyeur e solitário da noite, de seu lugar perscrutador, a certa distância, pela janela, enquadra o ato furtivo de alguém apagando a luz e se recolhendo na sua intimidade. Ao expandir o tempo da ação, Jussara ressalta os elementos espaciais da cena, o que faz deste vídeo uma quase pintura ou vídeopintura.

Este fenômeno de realçar o tempo se repete no vídeo E se eu Fosse Melquíades?, cuja imobilidade de uma escultura clássica de um guerreiro, montado em seu cavalo, desfaz-se pelo cavalgar implícito da câmara da artista que controla, com seu movimento cadenciado, a idéia de tempo e vertigem. O mesmo acontece com a série de fotografias Eles Vieram da América, em sentido contrário, já que aí o movimento é apenas sugerido pela alternância das imagens fixas. Há certo humor nos dois trabalhos, no entanto, o que pode parecer um passeio no carrossel de parque de diversão ou uma simples brincadeira com bonecos acaba por se transfigurar em resistência e conflito de gente grande.

O tempo também se dilata em Quando Caí do Meu Cavalo Branco. Neste vídeo auscultamos as falas fantasmáticas das esculturas clássicas na Piazza della Signoria (onde se encontram a Galleria degli Uffizi e o Palazzo Vecchio), em Firenze, a partir das vozes dissonantes dos visitantes, numa justaposição de camadas que se somam o tempo real (aqui e agora – a obra e o espectador), mais o tempo do registro da fala (momento do flagrante, marcado pela gravação), além do tempo ressonante da praça, desabitada de seus usuários habituais e agora povoada pelos espectros das esculturas humanizadas.

Por fim, com o trabalho Rotativo, que nomeia inclusive esta exposição, a câmera de vídeo foca a própria artista, como um ser anônimo, a caminhar para o nada, sem destino, em direção ao vazio - fantasma de uma estação de trem, sem ponto de chegada ou partida, erradio entre as camadas do tempo e do espaço, por aonde o mundo, nas pequenas coisas, se faz continuar.

Herbert Rolim

Artista e professor de Artes Visuais do CEFET/CE

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